ESCOVA
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi
sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam
bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois
aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de
escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de
antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo
pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras
eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que
estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras
possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias
remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar
de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei
a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias
inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma
perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a
eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu
não batia bem. Então eu joguei a escova fora.
(Barros. Manoel de. Memórias inventadas: a infância.
São Paulo: Planeta, 2003.p11
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